22.9.05

Carta ao Pai

Ler o livro Carta ao Pai, de Franz Kafka dá uma outra dimensão à compreensão de sua obra e pensamento, no livro a intimidade do autor parece se desnudar sem que isso ocorra de forma vulgar ou desnecessária.Com precisão literária, digno de qualquer romance, Kafka escreve uma carta, que na verdade nunca foi entregue, cuja narrativa seria um acerto de contas com seu pai.Não é difícil verificar a influência que o pai teve na vida deste escritor, a força daquilo que Kafka considerava tirania e que certamente teve impacto crucial sobre sua personalidade.Interessante ver que, enquanto filho, Kafka observava aparentemente passivo mas com percepção aguçada as atitudes de seu pai, uma observação refinada e inteligente, mas de grande sofrimento.Através das críticas avassaladoras ao que Kafka considera desmandos do pai, constrói uma articulação de pensamento crítico e pesado, digno de um gênio, mas com a mágoa tão sentida, quase de um menino, que muitas vezes se iguala a de qualquer outra pessoa diante do amor não correspondido, expondo uma ferida aberta de anos e anos de revolta e no final, a força da indignação.Li O Processo antes de Carta ao Pai, hoje vejo todo o livro sob outro ângulo, nele percebo o quanto Kafka criticava quase a si mesmo, falando na verdade de uma auto recriminação diante da passividade frente a um oponente contra o qual não tinha força interna para lutar.Penso que, de alguma forma, no livro O Processo, ele estava falando de um sentimento que quase nunca conseguimos escapar, a culpa, só ela tem força para nos tornar algoz de nós mesmos, a ponto de não questionarmos nossas penas, nossas punições.Não é difícil perceber que todos estes ingredientes contidos no livro foram vividos na relação com um pai castrador que o impedia de se tornar um homem maduro para enfrentar a vida adulta (Kafka não conseguiu casar).É nítida a tristeza da falta de um referencial que ele pudesse considerar digno de ser imitado, com certeza o pai, amado e odiado ao mesmo tempo, não conseguiu ser uma referência masculina para ele, talvez por considerar sua tirania contraditória e sem sentido.A ambigüidade de sentimentos permeia toda a carta e vai se tornando quase um encontro com nossos próprios sentimentos diante do objeto amado quando não correspondido, a expectativa de algo que não foi como o esperado.Enfim, Carta ao Pai é um acerto de contas histórico que nos faz retornar aos nosso acertos parentais e individuais, ao questionamento de nossas relações primitivas e atuais.Kafka com sua mágoa particular nos faz refletir e entender um pouco mais sobre sua subjetividade e por conseqüência sua obra.Em uma simples carta pessoal, sem nenhum intuito literário, consegue ser genial, imortal e sempre atual.Um presente literário que enternece o coração, mas também inquieta.Fácil de ler, difícil de esquecer.