29.7.05

Criança Esperança: indulgências e missionários

Há certa perversidade em se debater algo como o programa Criança Esperança, uma parceria entre a Rede Globo, o Unicef e, agora, a Unesco. De forma ampla também da Igreja Católica no Brasil, através principalmente da pastoral da criança, e de um número grande de associações beneficiadas com o dinheiro obtido com as doações do público.

A vigésima edição do programa está em seu momento de capanha para a doação de recursos para o exercício de 2006, capanha que se iniciou no último final de semana e prossegue até o dia 20 de agosto. O programa de lançamento da campanha contou este ano com duas apresentações, uma sábado à noite e outra no domingo à tarde.

A diretoria comercial da emissora, que vende a publicidade para o programa de forma isolada, comemora que "em 2004 o resultado de audiência e share foi superior a somatória de toda a concorrência", uma vez que "os mais variados programas da TV Globo estarão envolvidos nas comemorações, do jornalismo à teledramaturgia, reforçando a campanha para superar o recorde de arrecadação ocorrido em 2004: R$ 16,1 milhões."

Sem dúvida o programa merece crédito, apesar do número limitado de crianças e adolescentes atendidos por estardalhaço de caráter nacional: são apenas três milhões atendidas por ano de um universo de cerca de 15 milhões com renda família inferior a 1/2 salário mínimo por pessoa, ao menos no aspecto mercadológico da solução.

Os números gerais espantam quem está acustumado com as finanças de pessoa física, mesmo aqueles com situação financeira confortável, mas o que mais impressiona é a habilidade para produzir resultados tão eficientes com tão poucos recursos, uma vez que se for dividido o total arrecadado em 2004 (16 mi) pelo total de crianças atendidas (3 mi), chega-se à proeza de transformar a realidade de uma criança com a módica quantia de cinco reais por um ano inteiro de atendimento.

A perversidade, no entanto, de se abordar o debate sobre o Criança Esperança, é equivalente a revelar à criança que o Papai Noel é apenas uma doce ilusão, boa para recordar dos tempos de infância, boa para se reviver com os filhos, que um dia atentam para a letra da música que cantam tão alegres: "eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel, com certeza já morreu, ou então, felicidade, é brinquedo que não tem", então o sonho se desfaz.

Para começar de leve basta comparar os recursos arrecadados com o programa (16 mi), de pessoas físicas e jurídicas do Brasil todo para causa tão "nobre" com a mais conservadora das estimativas de recursos aportados pelo capital privado e pelo capital estatal para a corrupção (dezenas de bilhões), não apenas no mensalão, como em outros esquemas em vigência apenas no exercício de 2005, que não é ano de eleição.

Tal constatação, no entanto, não deixa de representar também um alívio, afinal, apesar de bilhões de reais serem gastos anualmente com corrupção, ao menos uma pequena quantia transforma a vida de tantas crianças no Brasil, segundo o programa, ou seja, há esperança, como é necessário que exista.

O programa funciona como um serviço de venda de indulgências, onde o brasileiro de classe média pode comprar seu perdão por seu pecado quotidiano, composto, no mínimo, de omissão severa diária diante do sofrimento alheio, especificamente no caso do Criança Esperança de pessoas aceitas como inocentes.

Todo ano milhões de pessoas pagam uma pequena prestação de seu lugarzinho no céu, ao lado dos homens de boa vontade, e das mulheres também, claro. Desde que inventaram o Criança Esperança, há 20 anos, São Pedro precisa construir conjuntos habitacionais na periferia do paraíso. De tanta gente que chega lá com uma carta de crédito tão michuruca, só mesmo pré-moldado de nuvem para resolver.

À época da colonização eram os missionários jesuítas que vinham, com toda sua fé, com toda sua crença de estarem conduzindo os nativos do lugar que hoje se chama Brasil à salvação, adestrar os índios brasileiros, vivenciaram inúmeras privações para levar a cabo sua missão, embora desconhecessem qual realmente era.

Hoje, são milhares trabalhando nas ONG, associações sem fins lucrativos que reunem profissionais e amadores, remunerados ou não, empenhados na tarefa de salvar os trobriands, servindo à sociedade em disciplinar os potenciais marginais do sistema, em adestrar crianças e adolescentes para a moral do trabalho, para que não formem no futuro bandos perigosos vagando ociosos pelas cidades e destruindo a paz tão almejada, aquela que dos malvadinhos "pedindo a paz sem oferecer nada em troca."

O importante, ao final, é manter viva a esperança nas crianças, como em um conto de fadas que encontrou seu leitor depois de ser expurgado da biblioteca de um grande e tradicional colégio de Fortaleza (CE): "A fada compreendeu por que era importante, para os mágicos, os meninos terem esperança. A esperança é uma coisa que sempre espera e nada faz."

(...)

Acordou pela manhã, feliz como aluno em recreio, e saiu só, sem rumo, rua adiante. E ao primeiro menino ofereceu seus poderes.
- Não - disse o menino. - Quero aprender a ler e escrever na escola. Ontem - continuou ele - um colega aprendeu sozinho e foi levado pelos doutores para tratamento em hospital. Eles disseram que ele sabia mais do que devia. Não sei o que farão com ele. Talvez tome injeção de esquecimento. Com isso, fiquei com medo de saber.

(...)

De repente, uma voz de menina murmurou com medo:
- Eu quero uma cama para dormir. Sem cama não posso ter sonhos.
Os meninos calaram...
A fada, assustada, olhou no coração da menina e viu a esperança balançando.
Com gesto preciso, fez surgir, no centro da praça, uma cama de madeira polida e mais um colchão de algodão macio.
- É sua - disse a fada.
A menina, olhando de longe e com medo daquela verdade, respondeu:
- Não quero mais. Não tenho casa para guarda a cama.
A fada, sem vacilar, continuou seu trabalho, fazendo nascer, no meio da praça, uma casa, com janelas para os quatro cantos do mundo! E, dentro da casa, a cama.

(...)

No meio da brincadeira que os meninos viviam, foram aparecendo magicamente: o banqueiro, o industrial, o economista, o arquiteto, o deputado, o professor, o padre e o delegado.
Sem reparar na alegria dos meninos, o prefeito discursou:
- Senhores, a praça foi feita para o povo pensar a esperança. Não posso deixar esta casa plantada no meio dela. Como representante legitimo do povo, mandarei destruí-la.
O banqueiro perguntou ao industrial:
- Como a casa foi construida, se ninguém me pediu dinheiro emprestado?
O industrial respondeu:
- Seu material de construção não foi comprado na minha indústria. É contrabando.
O economista disse:
- Não fui consultado sobre os preços da construção.
O político discursou:
- Minha gente, eu não usei minhas Medidas Provisórias.
O arquiteto contou que não recebeu nenhuma encomenda do projeto e o professor lamentou a falta de cultura do povo.
O padre apenas rezou:
- Santo deus!
E o delegado, que tudo ouviu, apenas ordenou aos soldados:
- Prendam imediatamente a pessoa que desobedeceu à lei.

(...)

A fada compreendeu por que era importante, para os mágicos, os meninos terem esperança. A esperança é uma coisa que sempre espera e nada faz.

(...)

Maria foi levada para a sala de interrogatório. Assentou-se diante do delegado e ouviu a seguinte sentença:
- Fada não é nome nem sobrenome. Entrou na cidade sem passaporte, sem carteira de identidade, sem carteira profissional, sem título de eleitor, sem cartão de crédito e CPF. Não tem endereço de residência nem CEP e diz ter como profissão realizar desejos. Não é filiada a nenhum sindicato e ensinou menino a ler e escrever sem técnica de professor. Construiu casa sem empréstimo, avalista e projeto, em lugar proibido. Falou mal da esperança. Contou segredo no coração dos meninos. Sorriu no momento da prisão, desrespeitando as autoridades. Com certeza, não foi informada de que vivemos numa democracia. Por tudo, Maria do Céu é culpada e permanerá presa até que se prove em contrário.

(..)
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Onde tem bruxa, tem fada...
Editora Moderna. São Paulo, SP. 1995. 76a. Edição.
Ilustração de Mario Cafiero.