30.7.05

Lula não cai, pode até balançar, mas não cai

A maioria dos brasileiros não tem consciência da diferença entre o conceito de democracia para os brasileiros e para os estadunidenses. Sempre se pensa que uma palavra com uma mesma etimologia e significado em sentido lato remete à mesma idéia em qualquer lugar e em qualquer tempo, mas esse não é o caso.

Para Chomsky (1989), democratizar a mídia representa duas idéias diferentes, baseadas em diferentes conceitos de democracia, para brasileiros e para estadunidenses:

"For then [brazilian bishops], democracy means that citizens should have the oportunity to inform thenselves, to take part in inquiry and dicussion and policy information, and to advance their programs through political action. For us [at USA] democracy is more narrowly conceived: the citizen is a consumer, an observer but not a participant. The public has the right to ratify policies that originated elsewhere, but if the limits are exceeded, we have not a democracy, but a 'crises of democracy', which must somehow be resolved."

Ou seja, conceituralmente no Brasil se compreende democracia como a participação na definição de políticas e do governo em si e nos Estados Unidos a democracia é compreendida como um instrumento de ratificação do eleitorado a políticas previamente definida pelas elites.

O que conduz ambos os povos a percepções tão diferentes sobre uma mesma palavra na visão de Chomsky não pode ser objeto deste texto, em primeiro lugar pela patente falta de preparo deste autor e também por que mais que se ligar à origem do fenômeno é objetivo aqui destacar as relações entre essa percepção diferenciada e a atual crise política brasileira.

Apesar das diferenças de percepção a prática democrática nos dois países não é tão divergente, é por demais similar, embora seja difícil comparar a participação do eleitorado no Brasil, cuja legalidade democrática foi limitada por inúmeros golpes de Estado que estabeleceram longos períodos de excessão ao longo de pouco mais de um século de república em comparação com a estabilidade legal da instituição republicana nos Estados Unidos.

O eleitorado brasileiro não participa, seja diretamente ou seja por representação, na definição de políticas ou nas ações do governo, mas acredita que deveria participar, que está em falta para com a nação e que a nação está em falta para com ele, uma dissonância entre teoria e prática, que acaba por levar à prova constante das instituições.

A elite brasileira, que vive entre o desejo dos resultados da economia dos EUA e o requinte e a sofisticação européias, sabe muito bem que o que lhes interessa é o conceito de democracia ali vigente, embora não saiba exercer com a competência necessária o modelo de propaganda da elite daquele país.

Para o brasileiro, povo ou elite, a crise política é previsível e, por isso, não choca. O eleitorado têm consciência que os políticos não os representam e que utilizam a máquina estatal em seu próprio benefício. A população convive com a corrupção política no município, sempre há alguém na comunidade que até participa de um ou outro esquema.

A população sabe que o sistema é podre, mas está de certa forma tão comprometida com o sistema, uma vez que nas cidades pequenas do interior todo mundo quando não é primo, é vizinho, que não se vislumbra uma alternativa plausível.

De um lado o executivo federal está distante do eleitorado, não é percebido enquanto uma continuidade do poder local e de fato não o é, então Lula aparece convicente na TV, ao mesmo tempo moderado e bonito, um grande símbolo da luta pela democracia e um herói do povo. O poder local não tem como neutralizar sua eleição.

Do outro, os deputados federais, embora também estejam distantes da população, são anônimos, não são grandes heróis, talvez por isso a escolha do eleitor possua um vínculo mais forte com o poder local.

O poder local estabelecido, no município ou no bairro, tem mais força para eleger os deputados de seu interesse que para eleger o presidente de seu interesse, pois o deputado é apresentado como amigo do município e não como representante de um determinado pensamento e é como amigo do município ou do bairro, da comunidade ou da igreja que a maioria dos deputados são eleitos.

O eleitorado tem dificuldade de reconhecer o partido, de perceber o que uma sigla ou outra significam e, se a nível nacional existe alguma noção de partido, a nível local, municipal, os partidos servem de legenda momentânea às famílias tradicionais, à elite local.

Talvez um reflexo dos suscessivos períodos de excessão vivenciados no Brasil, os partidos brasileiros são frágeis, são instituições novas, o PT, partido do Presidente da República, está comemorando 25 anos, ou seja, o partido do governo é mais jovem que a maioria dos eleitores.

O grande problema do PT para o establishment é que seu discurso é o de aproximar o exercício democrático da percepção de democracia no Brasil e nos municípios menores as administrações petistas acabam por instituir práticas como o orçamento participativo com sucesso, o que não interessa aos poderes estabelecidos.

Para as elites o Lula na presidência não atrapalha, mas deixar que o PT se fortaleça com o Lula pode criar a idéia de que votar no PT é votar no Lula, de que votar no candidato do PT no município é conferir mais poder ao Lula, então a elite teme que que se o PT governar mais municípios, vai haver mais gente acreditando que pode participar do governo e isso é um risco verdadeiro para as elites.

É por isso que é necessário enfraquecer o PT, encabular o militante local, aquele que acreditava na idoneidade do partido, que atribuia ao partido a mesma honestidade que a si próprio, que não vai ter mais a mesma garra na próxima eleição, assim o PT pode até levar alguns governos de estado, até o presidente mas não leva muitos deputados estaduais ou federais na próxima eleição, que seriam oficiais importantes para as pequenas batalhas municipais das eleições de 2008, quando o plano petista realmente poderia ser considerado consolidado.

O Lula então não cai, mas o projeto petista para o Brasil se esfacela em 2005, para o PT chegar à presidência sem construir uma base de sustentação foi a emenda que destruiu o soneto. O PT conseguiu manter os anéis e perder os dedos, pois sai com seu símbolo maior quase intácto, mas com seu corpo esfacelado.


CHOMSKY, Noam. Necessary Illusions: Thought control in democratic societies. South End Press. Boston, MA. 1989.