24.7.10

Sobre o projeto de lei que trata da palmada

«Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou simplesmente suas questões, fossem ouvidos em uma escola maternal, isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino»
Gilles Deleuze



Sinto-me impelido a dar o retorno pedido sobre o texto «Goleiro Bruno e a Lei da Palmada», disponibilizado em seu blog, acessível através da ligação «http://adrianaoliveiralima.blogspot.com/2010/07/goleiro-bruno-e-lei-da-palmada.html». Não é sempre que um assunto me proporciona tanta motivação para o debate. Acontece que esse em particular, imiscuísse por campos bastante complexos de teorias das ciências política, da psicologia cognitiva e, de certa forma, também da filosofia.
O primeiro ponto a ser considerado é do papel do governo na normalização das relações entre pais e filhos ou nas relações entendidas como privadas, ou seja, fechadas ao ambiente doméstico. Nesse ponto é importante separarmos o que seria um debate de cunho utópico do debate também necessário, de cunho aplicado.
Uma coisa é discutirmos a utopia de um Estado que não interfere no ambiente privado ou nas relações privadas. Trata-se de uma bandeira política válida, com pessoas dispostas a defendê-la com a própria vida (ao menos até uma certa idade): de um lado estão os anarco-socialistas, também chamados de libertários ou simplesmente anarquistas e, do outro, os anarco-capitalistas, também chamados de libertarianistas. São duas correntes que pregam a quase extinção do Estado, que se encarregaria exclusivamente da defesa externa da comunidade. Pensar a viabilidade teórica de tal sociedade é um exercício válido, mas não percebo sentido em se debater as leis em vigor ou em tramitação a partir dessa mesma discussão, pois nosso Estado, bem como todos aqueles dos quais tenho conhecimento, tem suas instituições estruturadas sobre paradigmas bastante distintos.
Sendo assim, aquilo que nomeei um debate de cunho aplicado é aquele que se restringe aos paradigmas fundantes da presente organização de governo e, nessa organização de governo, o papel do governo é bastante mais amplo que o desejado tanto por libertários quanto por libertarianistas. Creio contudo que seja desejado pela maioria das outras pessoas, posto que suas leis são fruto de processos democráticos.
Podemos debater as leis que estão sendo propostas, mas é preciso haver um foco. Eu, por exemplo, acredito que o regime parlamentarista seria melhor que o presidencialista, mas não cabe eu trazer essa discussão para o debate sobre a aplicabilidade da Lei da Ficha Limpa nas eleições deste ano. Eu não estaria enriquecendo a discussão, pelo contrário.
Ao governo não cabe o papel de criar as crianças, salvo naqueles casos em que os pais, avós ou parentes até terceiro grau não são capazes de fazê-lo, mas ao Estado, e não o governo, cabe estabelecer parâmetros que determinam direitos, deveres, responsabilidades e limites para a atuação dos indivíduos em suas relações privadas, tanto normalizando as relações civis, quanto na criminalização de atos considerados inadequados pela sociedade. Ao governo cabe a responsabilidade de impor aos indivíduos o cumprimento das leis, e isso implica em impor aos pais e guardiães o comprimento de suas responsabilidades como pais, segundo as leis existentes.
Sendo assim, dentro do contexto social e legal em que vivemos, é pertinente que se estabeleçam leis com objetivo de normalizar as relações privadas, mesmo as relações domésticas, não apenas pelo viés criminal, mas também civil.
É claro que a forma de se relacionar com essas leis, de interpretá-las e compreendê-las varia de indivíduo para individuo, não apenas mas também conforme seu estágio de desenvolvimento: pré-convencional, convencional ou pós-convencional. Num mundo ideal ou utópico todos os adultos estariam no estágio pós-convencional de desenvolvimento do raciocínio moral, mas sabemos que grande parte da população deste ou de qualquer país pode alcançar, pelo suporte social, o estágio convencional como seu limite individual.
O projeto de lei que hora se discute trata apenas de um aclaramento de outros dispositivos já existentes, mas não está sendo construído gratuitamente ou «chovendo no molhado» como poderia se dizer. Tal projeto é fruto de longa militância das principais entidades e conselhos de defesa da criança e do adolescente, que percebem cotidianamente o efeito da falta de ênfase e clareza dos dispositivos atuais.
De fato, já é proibido qualquer tipo de violência, não apenas física, mas também psicológica, contra uma criança ou adolescente. É proibido contra qualquer pessoa até, mas policiais, promotores e juízes são pessoas, e, como todas as demais, interpretam os termos genéricos e amplos da lei a partir de seus preconceitos individuais. Assim todos fazemos. É um esforço hermenêutico consciente dos membros do Judiciário e do Executivo a interpretação das leis segundo os valores e princípios dos legisladores que a escreveram. Para isso, muitas vezes, o Legislativo precisa revisar uma lei existente ou criar uma nova, que complemente e aclare, com um texto mais específico, mais direto, as intenções do legislador, assim espera-se facilitar cotidianamente essa interpretação, torná-las mais direta.
Assim ocorreu com a Lei Maria da Penha. Não é que anteriormente à lei o marido pudesse bater impunemente em sua esposa. Já era crime como é crime bater ou agredir fisicamente, por menor que seja a agressão, qualquer pessoa, viva ou morta, mas havia a necessidade de melhorar os dispositivos existentes, para aumentar sua eficácia.
É a mesma questão quanto ao projeto de lei contra a palmada. Ora, uma criança ou adolescente não deixa de ser uma pessoa, é crime agredí-lo, é uma pessoa especial, protegida pelo Estado, com direitos e proteções adicionais, deveria ser claro para todos que não se pode agredir a uma criança.
No entanto, apesar disso, não é raro encontrar pessoas que defendam publicamente que os pais e as mães cometam agressões contra seus filhos, já vi isso em igrejas, em reuniões de escola ou em conversas informais. É por isso que a complementação do marco legal é necessária, pois é preciso tornar mais claro para a toda a sociedade e também para os agentes do governo o teor das leis já existentes. Até que fique claro que é crime agredir qualquer outra pessoa, seja ela seu filho, sua esposa ou seu empregado, todas pessoas que estão em situação de vulnerabilidade em relação a um indivíduo cuja relação de poder é absolutamente desbalanceada, cujos abusos é papel do Estado coibir.
Talvez não seja necessário criar uma lei que diz que é proibido aos pais dar drogas ilegais a seus filhos, pois entende-se bem que se é proibido dar drogas ilegais a qualquer pessoa, mais grave (do ponto de vista legal) é dar drogas a crianças e adolescentes. O estranho é que sendo crime agredir qualquer pessoa, tenha gente que defenda ou autorize a agressão contra crianças ou adolescentes, como se eles não fossem pessoas dignas de direito.
É lamentável que tal projeto de lei precise tramitar e, mais lamentável ainda, é que não estamos discutindo o direito de agredir, ou seja, se a agressão a qualquer pessoa deva ser descriminalizada, estamos discutindo se uma exceção deveria existir para que o adulto (pai, professor ou responsável), que está em um papel de poder inquestionável em relação à criança (filho, aluno ou menor sob sua proteção), possa agredí-la, como um senhor a seu escravo. Dependendo de quem é meu interlocutor, essa pode ser uma discussão bastante desconfortável, mas sua existência mostra toda a importância da reforma desse marco legal.
De fato, é importante considerar o papel dos exemplo ou modelos aos quais imitar ou referenciar em todo processo de aprendizado. A criança ou o adolescente que apanha aprende através do exemplo que a agressão física é a solução para as situações que carecem de recursos intelectuais ou argumentação como meio de resolução de conflitos. Elas aprendem que é correto o mais forte subjugar o mais fraco através da violência e, acredito, não deveria ser isso que gostaríamos de ensinar coletivamente para nossas crianças.
O esforço de resolução de conflitos pela argumentação não é natural, precisa ser aprendido. Natural é agredir. Então é aceitável que um bebê ou uma criança da primeira infância usem a violência como meio de resolução de conflitos, pois intelectualmente eles ainda não estão preparados para aprender a resolvê-los de outra forma.
As crianças precisam aprender, à medida que crescem e que sua capacidade de raciocínio se amplia, que essa não é uma forma aceitável em nossa sociedade, pois não é assim que os adultos agem e é só assim, num ambiente de respeito-mútuo, que se pode esperar a constituição de uma personalidade autônoma. O respeito precisa ser aprendido. Não é possível a uma criança tornar-se um adulto autônomo se não considera a si própria digna de respeito e, voi lá, quem tem o poder para lhe autorizar a se respeitar se não seus pais ou cuidadores primários, professores e protetores? Bater numa criança e em especial em um filho é perpetuar a barbárie como meio de solução dos conflitos difíceis.
Falo em perpetuar, pois são os modelos da infância que nos surgem nos momentos de maior pressão, nos momentos em que não sabemos o que fazer, então é esse modelo que surgirá no momento em que o filho se tornar pai e se deparar em situações difíceis com seu próprio filho: a reprodução transgeracional da violência e da humilhação.
É, de fato, inaceitável, que um adulto, quando chamado a se aproximar de uma criança, no ápice de um conflito, acredite que deva abrir mão de seu papel como exemplo positivo, e utilize sua superioridade física, social e econômica para humilhar seu próprio filho, que já lhe devota respeito e que passa a perceber seu próprio corpo como indigno de respeito, do respeito dos pais e, portanto, do seu próprio respeito.
O que se espera desse adulto é que encontre a paciência e a autonomia necessária para se por no lugar do outro, da criança, compreender suas necessidades de satisfação e criar um cenário positivo de resolução de conflitos, aproximando-se da criança através de argumentos acessíveis ao seu nível intelectual e de raciocínio moral.
Lamentável é que tantas vezes os filhos sejam agredidos por não compartilharem de decisões que são meros caprichos e birras dos pais. Quantas vezes eu mesmo me vi sem fundamentação lógica para minhas decisões arbitrárias na relação com os fihos no momento em que me via obrigado a sustentá-las. Se eu achasse que bater é certo, quantas vezes meus filhos teriam apanhado por não atender aos meus caprichos?
Sim, os pais estão numa situação de autoridade que lhes permite criar leis, criar regras e tomar decisões emanadas de sua própria autoridade e, muitas vezes, a criança não tem competência intelectual para compreender toda a fundamentação, então nesse caso a decisão, lei ou regra é estabelecida formalmente a partir dessa autoridade, mesmo assim, se você quer promover o desenvolvimento do raciocínio moral e a boa auto-estima da criança, esse tipo de fundamentação precisa ser explícito e restrito aos casos em que são necessários.
É necessário para a criança, como é para o par nas relações entre adultos, que as regras e as exigências tenham sua fundamentação declarada explicitamente, em especial nos casos em que essa fundamentação emana do ser solicitante. É importante que o pai, o professor ou o gerente, quando estabelecem uma norma, uma solicitação, deixem claro os aspectos subjetivos de suas solicitações. Não também, mas principalmente quando desprovidas de sustentação evidente para a outra parte. «Baixe o som, por que EU me sinto incomodado com o volume, que está exagerado para mim» e não «Baixe o som que está alto demais». Tal atitude é muito importante para que o outro ser possa estimar-se bem ainda que subordinado ao outro, e não como um ser intrinsecamente inferior.
Para que os indivíduos alcancem o estágio de desenvolvimento moral pós-convencional eles precisam aprender e compreender que não há fundamento para uma moral universal.
Sabemos que não existe fundamento natural para uma moral universal e que os únicos pressupostos concluídos ao longo da história para uma moral universal estavam fundados no princípio de uma moral heterônoma, emanada de um deus, sabemos também que nenhum desses paradigmas jamais se constituiram universais a despeito dos tantos empreendimentos genocidas empenhados por seus devotos.
Sabemos que o esforço kantiano de formulação de uma moral universal, que tem em Piaget um de seus herdeiros, não consegue cumprir a promessa de construção de um paradigma moral universal e moderno.
Resta-nos militar para que o Estado cumpra seu papel de regular as relações individuais, impondo aos cidadãos o monopólio estatal do uso da violência, em especial para assegurar a segurança e a proteção dos indivíduos mais fracos em situação de vulnerabilidade perante indivíduos mais fortes, fazendo-se necessário explicitar que esta proteção deve estender-se ao íntimo do lar, onde sabe-se que a violência acontece às escuras, não apenas para com as crianças, mas também para com as mulheres, os idosos, os deficientes e os empregados e as empregadas.
Ensinar o agir moral é uma tarefa complexa, pois sendo o raciocínio moral repleto de complexidades, seu desenvolvimento requer oportunidades vivas e marcantes. Um pai, no momento em que resolve seus conflitos através da força, está apontando na direção oposta do ensino da moral, a despeito do motivo. O raciocínio moral é cheio de grandes dilemas e a vida adulta é cheia de grandes dilemas. Que adultos queremos decidindo sobre eventos como o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki? Será mesmo que são aqueles que aprenderam que o mais forte resolve os conflitos mais difíceis pela agressão?
Não posso acreditar que pessoas tão esclarecidas possam defender o lar como trincheira legítima para o cultivo e a manutenção da barbárie, da covardia que é um adulto cinco ou dez vezes mais pesado agredir ou humilhar uma criança a quem deveria proteger. Nosso esforço de educação e de formação das gerações mais novas deveria ser o de ensinar mecanismos sofisticados de resolução de conflitos, de promover o desenvolvimento da moral autônoma (em Piaget) ou o nível pós-convencional (em Kohlberg), que são necessários à convivência e à construção de uma sociedade plural, capaz de respeitar os outros em suas diferenças, inclusive com relação às suas escalas de valores. Ao Estado, sim, cabe velar pela segurança e a integridade dos mais fracos diante dos mais fortes.
Atribuir a violência urbana ou doméstica à redução da própria violência doméstica não pode se sustentar. É como dizer que os Hooligans praticavam seus atos de violência porque seus pais não os educaram direito. Sabe-se que não é verdade, que se, por simplificação, tomarmos por fundamento a pirâmide de Maslow, podemos compreender aquele fenômeno em meio às transformações sociais e econômicas capitaneadas pela ministra Thatcher na Inglaterra.
O desafio da não-violência é grande, requer esforço, requer comprometimento, não é natural. Natural é a violência, natural é a barbárie. Bater é fácil. Bater e agredir crianças é uma herança transgeracional difícil ser abandonada, por isso esse projeto de lei é pertinente e necessário.
Tal projeto merece aplausos e defesas calorosas e precisa, sim, que os pedagogos estejam ao lado dos jornalistas, dos psicólogos dos assistentes sociais e de tantos outros profissionais, independente da habilitação, que se posicionam em defesa das crianças e dos adolescentes e de uma sociedade melhor para nossos filhos e netos.